a.m.o.t.e. - um cheirinho...
"Quando acordei hoje de manhã, sentia-me cansado, parecia que tinha acabado de me deitar quando o despertador tocou. Eram 7h15 e lá estava o rádio a tocar nas alturas. Levantei-me, fui até ao quarto-de-banho e olhei para o espelho. Estava com olhos de quem não tinha dormido nada. E não tinha! Tinha saído da cama durante a noite e ido pintar para um jardim qualquer… Pelo menos era essa a sensação que eu tinha. Foi tão estranho recordar de repente tudo o que tinha sonhado, tão claramente como se o tivesse vivido de verdade no dia anterior!
Mas o que me deixou mais intrigado foi, provavelmente, a paisagem que eu estava a pintar no sonho… Aquele vale, aquele lago… o banco de jardim… a mulher… Todos aqueles elementos me eram familiares!
Andei o dia inteiro a matutar no assunto e quando finalmente cheguei a casa, fui ao meu ateliê e vasculhei todos os meus quadros. Até desembrulhei alguns que já tinha embrulhado! Revi imagens que já nem me lembrava de ter pintado! Mas lá encontrei o que procurava! Era exactamente a mesma paisagem que eu estava a pintar debaixo daquela árvore. Tinha pintado aquele quadro há mais de dez anos! Foi o meu primeiro quadro a óleo. E aquela paisagem, como todas as que eu pinto, não existe nem nunca existiu… Pelo menos idêntica, não! Apenas fragmentada… Cada elemento tinha sido absorvido por mim em passeios, em fotografias, em filmes… E depois tudo combinado originou uma paisagem que apenas eu conhecia, que apenas eu sabia da sua existência… uma paisagem minha! Um vasto arvoredo, do outro lado de um vale, onde havia um pequeno lago, e uma mulher sentada num banco de jardim a ler um livro…
Foi aí que eu percebi o porquê de ter sentido que conhecia aquele local. E claro que ela me sorria… ela conhecia-me de facto! Eu tinha-a pintado! Durante várias noites ela me observara de soslaio sobre o seu livro enquanto eu terminava de pintar o relvado, e o lago, e os arbustos… Mas eu não a pude reconhecer! No meu quadro ela está demasiado pequena para que se lhe distingam os traços do rosto.
Foi interessante rever o meu primeiro trabalho a óleo. Já o pintei há tantos anos que é mais do que normal notar-se uma grande diferença no domínio da técnica em relação aos meus quadros mais recentes. E ainda bem que assim é!
É engraçado poder ver hoje como pintava há dez anos atrás…"
Estava a ouvir: "Elephant", Damien Rice.
Ando a ler (ainda que pouco): "As intermitências da morte", José Saramago.
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